quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Submundo

São 23h40. O casal apaixonado decidiu que o vagão do metrô é um lugar adequado para as preliminares. O rapaz ao meu lado acha que estou olhando para ele. Na verdade, olho o vidro (ou seria plástico, acrílico) da janela (isso aqui é uma janela?) para poder observar o casal pelo reflexo. Um integrante do casal coloca a língua na orelha do outro integrante, a cena é de puro desejo. Acho que os invejo. O garoto - ele não deve ter mais do que 25 anos - olha furtivamente para mim. Ele realmente acha que eu estou olhando para ele. Minha vontade é falar: "cara, olha para o outro lado. O casal está trepando no metrô." Mas ninguém repara. Umas pessoas iniciam o sono, outras, em grupos, conversam baixo. Eu e o rapaz somos os únicos sozinhos e acordados. Gosto do submundo à noite: dos ruídos, das pessoas que o frequentam, da iluminação, dos motivos que trouxeram essas pessoas aqui. Será que o casal está indo para um motel em outro canto da cidade? Será que eles estão voltando de uma festa? Será que eles são casados ou se conheceram agora? E ele puxa delicadamente o cabelo dela pela nuca e beija sua boca. Sim, eu os invejo. E o garoto? O que faz no metrô a essa hora? Voltou da casa da namorada? De um bar? Está indo para casa? Onde ele mora? Eu às vezes esqueço que minha presença ali é tão passível de perguntas quanto a deles. Mas como saber se eles não são uma ilusão minha, um delírio? Como ter certeza de que não sou a única a existir nesse mundo e nesse submundo que eu criei? Meus personagens se levantam, aguardam a porta do vagão abrir. Vão todos embora. Eu também vou embora. Eu vou para casa. Ainda tenho que pegar um ônibus. Sinto um desejo enorme de ser notada, assim como noto as pessoas. Observada, discutida, analisada. Desejada, quem sabe. Mas o ônibus chega na porta da minha casa, e a noite acaba. Os personagens, caso existam, continuam a desenvolver suas histórias. A minha, hoje, acaba nessa cama, sozinha.

Pega de surpresa

Você me abraçou. Duas vezes. E logo hoje que eu não arrumei o cabelo, que o rímel estava borrado, que o dia não nasceu direito. Queria ter sido capaz de ouvir, mas minha ansiedade passou como um bloco de carnaval por cima das palavras, das minhas e das suas. O que eu vi em você? Será que você vê algo em mim? A forma ou o conteúdo. Não importa. Para mim importa: forma e conteúdo. O dia hoje foi péssimo. E não deu tempo nem de dar uma olhadinha no espelho antes de você aparecer.
Ontem eu tinha passado o dia esperando uma ligação sua e não consegui dormir. Uma sinal, um contato qualquer, só para que eu pudesse fechar os olhos e sonhar com suas letras. Mas você nem surgiu na minha tela. Achei que não estivesse mais na cidade. Repassei as histórias: as que eu vivi e as que não são minhas. Seu sorriso paradoxal me trazia uma calma e um desespero, um alívio e um desajuste. E aí hoje você surgiu, como se brotasse do chão, tal qual flor, tal qual fogo. Suave nos modos, destruindo minha retidão de caráter. E logo hoje que eu não arrumei o cabelo. O dia hoje foi péssimo.

sábado, 19 de dezembro de 2009

Nos corredores daquele castelo

Eu te amo como se nada no mundo houvesse para ser amado, como se minha existência não tivesse outra razão a não ser de amar-te. Vamos embora daqui agora. Tu és meu objeto único de amor e adoração. Permita-me venerar-te até o fim dos meus dias. Eu observo teus passos, tua silhueta, sinto teu cheiro e tua louca vontade de fugir. Então apronte-te. Já é quase meia-noite. Os pássaros já foram dormir e restaram apenas os animais noturnos a nos espreitar detrás de moitas, aguardando para de assalto devorar nosso amor eterno. Sejamos rápidos. Sou tua, como segredos que guardas no fundo da mente. Sou tua como são teus os pés que te trazem aqui. Não há o que temer, a não ser a distância entre aqui e amanhã. Pode ser tarde quando o dia nascer.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Sobre a limpeza

A casa já estava arrumada para ele ir embora. Na verdade, ela sempre esteve, desde o dia em que ele decidira voltar. Seria muito arriscado entregar-se àquele amor novamente. Preferiu não recolocar as fotos no porta-retratos nem alterar o status na rede social. Manteve-se neutra, tal qual uma Suíça, esperando pacientemente que algo de ruim acontecesse. Então, como não havia nada que pudesse fazer, pensou que dormiria, plácida, mas a noite, aquela, como tantas outras anteriormente, prometia. Não dormiu. Percorreu mentalmente cada canto da casa, procurando vestígios dele, algum deslize, uma prova de amor aqui, a lembrança daquela viagem que fizeram juntos ali. Não havia mesmo muita coisa de relevante. Mas chamou sua atenção que ele tivesse deixado marcas na sua vida. Não eram muitas, nem grandes, mas eram marcas. Nada que um alvejante, uma esponja e uma noite de trabalho benfeito não dessem conta.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Um clichê embrulhado para presente

É muito clichê dizer que cada minuto pareceu dez? É pouco original? Essa historinha de dizer que o dia hoje demorou a passar já foi muito contada? Sim, sim e sim. Eu não me importo. As horas hoje se arrastaram como latinhas presas no carro de recém-casados. Barulhentas, desnecessárias, clichês. Obra de algum espírito de porco sem ter o que fazer. Cada minuto que não passava, era mais um minuto para pensar, cheirar, vivificar, sentir o ontem. Meus pensamentos pareciam caminhos de rato. Não davam em lugar algum, se cruzavam, iam e voltavam, retornavam ao ponto de partida para logo escolherem uma nova rota, tão ilógica, irrelevante e não razoável quanto a anterior. E o que eu posso fazer? Como eu poderia evitar? O que se diz para um cérebro atormentado, principalmente num dia em que o relógio brinca de slow motion?