quinta-feira, 30 de outubro de 2008
Será que vai chover hoje?
Ela pegou o guarda-chuva no canto da sala. Odiava dias chuvosos. Sentia um aperto no peito, um medo. Era quase síndrome do pânico. Adiava, adiava, esperava que a chuva parasse. Mas, pensando bem, não era da chuva em si que não gostava. Era da água, das poças, das coisas molhadas na rua, do fato inevitável de que, até chegar ao seu destino, iria se molhar. Pouco ou muito, não importa. Estava de bota, calça comprida, casaco de chuva. Tentava se proteger ao máximo, como se a gota de água que cai da folha da árvora fosse tóxica, ácida, corrosiva. Saiu de casa. Por que tinha a impressão de que quando chovia ela estava mais carregada? Mais bolsas, mais sacolas, mais papéis. Parecia também que tinha mais coisas desagradáveis para fazer. Seria só uma impressão? Não quis filosofar. Subiu os degraus como se cada bolsa (costumava usar duas e nem entendia o motivo) pesasse vinte e sete quilos. Sempre gostou de números quebrados. O ar quente e seco assim que entrava no consultório passava uma certa segurança, como se estivesse em casa. Essa sensação durava menos de um minuto. Sentia-se desconfortável ali. Mirou o guarda-chuva todo o tempo. Louca para ir embora. Mesmo sabendo que enfrentaria toda a agonia da chuva novamente.
Que nunca mais esquecerei
Fechou os olhos e reviu: ele parou com a mão no ar, antes que o tapa alcançasse o rosto. O palavrão, que devia ter permanecido no fundo da garganta, foi lançado ao ar também, ferindo muito mais do que o tapa interrompido. Os olhos negros destilavam ódio. Sabia que nunca mais esqueceria o palavrão, o insulto. Doeria para sempre. Mais do que o tapa, certamente. Já tinha recebido outros tapas. Ataque verbal como aquele, nunca. Na hora, começou a chorar, por não saber o que dizer. Não era como tantas outras palavras que não ferem, que passam batidas pelos olhos. Era uma palavra aguda, cortante. Penetrou no fundo da alma. Para sempre. Até o dia em que não lembrasse mais. Aquele olhar, de quem não tem mais amor, era presença constante em seus sonhos, em seus devaneios. Fazia esforço para perdoar, para relevar, para esquecer. Não conseguia. Infelizmente. Gostaria de poder passar por cima, sim, de não guardar aquilo em um lugar tão secreto. Rancor? Não. Não era rancor. Mágoa, talvez. Só que eterna. E a cena se repetia em sua mente sempre que olhava aqueles olhos, agora envelhecidos e tristonhos, mas que um dia descortinaram tanta raiva e ódio.
Mentiras da ficção
Me perguntaram se acaso sei ficcionar. Não sei. João ama Maria. Ficcão? Não sei. Eu presa na porta do ônibus, gritando impropérios. Ficção. Ela pegou o guarda-chuva no canto da sala, sem olhar para trás. Odiava dias chuvosos. Sentia um aperto no peito, um medo. Era quase síndrome do pânico. Toda ficção é baseada em fatos reais, pelo menos em viagens mentais reais. Eu conseguindo viver sem drogas. Tão real que eu ainda não acredito. Parou com a mão no ar, antes que o tapa alcançasse o rosto. O palavrão, que devia ter permanecido no fundo da garganta, foi lançado ao ar também, ferindo muito mais do que o tapa interrompido. Sei lá se eu sei ficcionar.
domingo, 26 de outubro de 2008
Eu não sei o que dizer quando o medo fala por mim
Todo final de domingo é a mesma coisa, e eu desisti de achar metáforas. Todo final de domingo é assim, e eu ainda tentei uma última metáfora. Impossível explicar. Impossível explorar. O medo toma conta de mim. Fico muda diante do embate de tantas forças internas. Olho para a televisão e tento me concentrar em algo que não seja o meu medo. Como, rio, observo. E só vejo medo, só escuto medo. Tentei com metáforas e não soube me fazer entender. Digo a verdade: medo. Medo de não ser, medo de ser, medo de continuar, medo de parar, medo de amanhã, medo de daqui a um mês, medo de dormir, medo de acordar, medo de não mudar, medo de mudar. E por mais babaca que isso tenho parecido para você, é isso mesmo. O medo me joga num limbo da existência. Fico quieta e respiro pouco. Não quero parar de respirar, para não morrer, mas também não quero que minhas células oxidem com velocidade exagerada. Ai, quando isso acaba? Crise interminável? E isso é carma? E isso é fardo? E isso é vida? Sonhos de mais uma noite perturbada de verão. Usaria tudo isso como título. E quase escrevo túmulo. Medo.
Sem lenço, sem documento, num sol poente de quase novembro
É noite na cidade. Lágrimas tocam o solo e logo evaporam. Faz calor na cidade. Alguns esperam pela brisa que não voltará, outros suam o resto de desespero do dia. É noite, é triste, é fim. A cidade não espera que o último de seus moradores adormeça. Ela engole, ela anda, ela implora. Uma cidade perdida, partida, parida, podada, permissiva, passiva, pedinte, pendente, padecendo da dor de ser mais do que uma cidade.
sábado, 18 de outubro de 2008
Pequenas histórias me fazem rir
Se volto, volto inteira. Talvez sem as mesmas palavras e aquela solidão tangente e visível. Volto. Volto porque sei que aqui é o meu lugar. Se as palavras levadas pelo vento não me comovem, estas arrancam pedaços, dilaceram e cicatrizam em marcas eternas. Não tenho mais aquela dor do abandono para te contar. A casa e a cama não ficam mais vazias. Talvez eu nem soubesse mais como é ser abandonada. Mas isso não me impede de voltar. Tenho outras histórias para contar. Outras dores. Desesperos e desesperanças, destempero e destemperança, destilados e desvarios, destes e daqueles.
sexta-feira, 17 de outubro de 2008
Circo de horrores
Reparo em cada detalhe. Em cores ou preto-e-branco. Posso sentir a luz, o calor, o respirar, o olhar, a tensão. Ouso dizer, com certa arrogância, que conheço perfeitamente cada centímetro. Ilusão. Reluto e aceito essa fantasia. Há um pulsar diferente no meu corpo. Sei a língua, o teatro, os tropeços. Nada mais. Para mim é o suficiente. Rememoro suavemente, sem atropelos e plácida, cheiros, frases, movimentos, sorrisos. Guardo com carinho a lembrança, uma delicadeza macabra dispensada somente a ilusionistas e palhaços.
terça-feira, 14 de outubro de 2008
Feriados nacionais do meu mundo
Todo mês comemoro Carnaval e Dia dos Mortos. Há dias em que a euforia toma conta de mim, nos outros choro perdas e abandonos dentro do cemitério de alegria. Meu calendário não comporta outros feriados.
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